Entenda porque esse jabuti não deveria ter sido inserido no Pacote Anticrime sem estudo aprofundado e audiências públicas prévias
O Plenário da Câmara aprovou, no dia 4 de dezembro de 2019, o Pacote Anticrime. Dentro deste Pacote, foi enxertado um jabuti: a figura do Juiz de Garantias. Trata-se da criação de mais uma personagem dentro do processo penal: mais um juiz!
Teremos, assim dois juízes. O primeiro será responsável pela condução da fase inicial de investigação, acompanhando a produção de provas, determinando prisões, autorizando a realização de meios de obtenção de prova invasivos como quebras de sigilo e analisando pedidos de libertações em inquéritos e flagrantes até o recebimento da denúncia. O segundo assumiria o processo na sequência e cuidaria da instrução processual e do julgamento.
A figura do Juiz de Garantias foi inserida no Grupo de Trabalho do Pacote Anticrime na Câmara dos Deputados. Não fazia parte das proposições legislativas que alicerçaram o Pacote Anticrime do Ministro da Justiça Sérgio Moro nem nas do atual Ministro do STF Alexandre de Moraes. A inserção do Juiz de Garantias foge bastante do escopo do Pacote e traz para o Legislativo uma questão complexa que afeta na raiz o Judiciário brasileiro, mudando toda a sistemática do processo penal.
Ainda que em outros países modelo parecido seja utilizado, há que se atentar para a especificidade de cada sistema. Na França, por exemplo, o juiz de instrução é uma espécie de delegado, que também tem iniciativa de investigação, o que não acontece no Brasil. Não é da nossa tradição jurídica separar juiz de instrução e juiz de julgamento! A estrutura brasileira não comporta essa figura que viola o princípio do juiz natural. Viola ainda o princípio da identidade física do juiz, previsto hoje no Código de Processo Penal.
Temos duas abordagens aqui:
– os que defendem o Juiz de Garantias enaltecem a importância da isenção do julgamento, evitando deixar um réu refém de algum juiz “contaminado” que acompanhe a investigação e julgue.
– os que não defendem o Juiz de Garantias afirmam que não é adequado fazer com que um juiz termine o que outro começou, sem ter a integralidade da construção do processo. Esta separação seria ruim pois “o juiz que mais conhece o caso é o que mais está apto para julgá-lo”.
Em meu entendimento, temos pelo menos cinco problemas, que elenco abaixo:
1. O Judiciário brasileiro já está sobrecarregado. Hoje, 40% das Comarcas Judiciais possuem apenas um magistrado. Há magistrados cuidando de mais de 20 comarcas! E ainda centenas de cidades sem sequer um juiz!
2. Há uma limitação econômica: não temos recursos! Não se pode criar uma figura que terá grande impacto orçamentário sem a respectiva origem de recursos. A estimativa é que essa seria uma conta de até 3 bilhões de reais!
3. Para operacionalizar o devido processo legal para todos os cidadãos há que se atentar, em primeiro lugar, para o direito de defesa. Qual o sentido de aumentar o número de juízes se faltam 10.600 defensores públicos no Brasil?
4. O Judiciário brasileiro já não é célere. Isso faria com que o sistema ficasse mais lento ainda, uma vez que interfere diretamente na duração do inquérito e na disponibilidade e coordenação de esforços logísticos. Se no modelo atual já temos problemas com prescrições, imaginem no novo modelo…
5. Esta mudança mexe com toda a estrutura do Processo Penal. Envolve mudança de postura, mentalidade, cultura. E também exige um planejamento e um novo desenho, o que não foi pensado, discutido ou esboçado…
Mudanças são necessárias. E esta discussão é muito válida. Mas o modelo precisa ser estudado – e muito. Friso: ele não foi amplamente discutido dentro do Grupo de Trabalho na Câmara dos Deputados. Foi apresentado em uma reunião e aprovado em outra, no atropelo. E, o mais importante: quando o Juiz de Garantias foi inserido e aprovado no GT, nenhuma audiência pública tinha sido realizada sobre o tema. Ou seja: as partes que mais conhecem o tema não puderam se manifestar ou opinar… Não dá para interferir no modus operandi de outro Poder sem ao menos ouvi-lo! Protestei e votei contra.
Veja meu protesto no Plenário:
Além disso, no começo de 2020, entrei com um pedido para a revogação do Juiz de Garantias (veja a explicação no vídeo abaixo).
Não podemos burocratizar e retardar a Justiça.
Quando a Justiça tarda, ela falha.