Adriana Ventura
Deputada Adriana Ventura é presidente da Frente da Telessaúde
Deputada Adriana Ventura é Presidente da Frente da Telessaúde

A transformação digital sob a ótica da telemedicina

Transformação Digital e telemedicina: uma discussão importante para o futuro da saúde no Brasil

A tecnologia está a serviço da humanidade desde que o ser humano criou o primeiro machado a partir de um toco de madeira e uma pedra lascada. E vem evoluindo, com o homem sempre em busca de otimizar os processos e facilitar a sua vida. Nem sempre, porém, essa evolução se concretiza de maneira homogênea e sem ruídos. O que temos visto, especialmente nos últimos cem anos, é a inovação forçar o homem a se adaptar aos novos tempos. Algumas vezes, sem resistência: luz elétrica, fogão a gás, geladeira, carro, telefone. Outros, com um período de adaptação, como a troca da máquina de escrever pelo computador, troca de ligações telefônicas por mensagens instantâneas, etc. Contudo, há casos em que o homem, diante da perplexidade da mudança, resiste. E este parece ser, de certa forma, o caso da telemedicina e, ampliando o espectro, da telessaúde.

Logo que cheguei à Câmara dos Deputados, fui designada pelos meus pares de à Comissão de Seguridade Social e Família, responsável por todas as questões relacionadas à saúde. E, ali, me deparei com uma polêmica grande a respeito de um tema aparentemente simples: a utilização de tecnologias da informação e comunicação (TICs) para prover remotamente serviços de saúde, educação em saúde, além de administração dos serviços de saúde. Sim, havia resistência à implementação de uma legislação para a telemedicina e a telessaúde.

A prática veio antes da legislação, isso é claro. Quem nunca recorreu ao telefone ou ao whatsapp para ter do médico da família uma orientação urgente no meio da madrugada? Em um país continental como o nosso, onde muitas áreas só tem comunicação por rádio, e levam dias de barco para serem alcançadas, parece intuitivo que o tele-atendimento já existisse. Assim como havia registro de telerradiologia e hot-lines de operadoras de saúde. Mas o fato é que, antes da pandemia da COVID-19, a legislação era omissa sobre o tema.

Computador mostra imagem captada à distância
Com a telemedicina, um médico pode ver uma imagem captada à distância

Note-se que a Organização Mundial de Saúde, desde 1997, já dava ênfase à telessaúde como instrumento de acesso a áreas distantes e desassistidas. Note-se ainda que, em 2016, o Ministério da Saúde lançou o Projeto Nacional de Telessaúde, focado na atenção primária, tendo a telessaúde se tornado componente da Estratégia de Saúde Digital no Brasil. No entanto, essa nova estratégia baseada em recursos digitais ficou praticamente restrita a um registro de intenções para projetos futuros. E continuamos sem a regulamentação.

O ano de 2020 chegou com um enorme desafio: o enfrentamento da pandemia da Covid-19 (SARS-CoV-2). O Brasil – e o mundo – se viu em um momento dramático, no qual a mera interação com outras pessoas se tornou um risco.

Essa situação sem igual provocou um questionamento: como garantir o acesso à saúde para aqueles que se viram subitamente em condições limitadas de deslocamento? Pois a grave crise sanitária gerou uma oportunidade única para a modernização da atenção à saúde e para a utilização de novas tecnologias para este fim. Assim, a prática da telemedicina despontou como uma ferramenta necessária para viabilizar, incrementar e modernizar o cuidado médico.

Já no dia 18 de março de 2020, comecinho da pandemia, protocolei o projeto de lei n° 696/2020, que liberava o uso da telemedicina em caráter emergencial em quaisquer atividades da área de saúde, enquanto durasse a crise ocasionada pela Covid-19. O PL foi discutido, aprovado e sancionado com grande rapidez, o que demonstra a grande relevância do tema: em 15 de abril de 2020, a lei n° 13.989/2020 já estava promulgada pelo Presidente, garantindo o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde.

Telemedicina em Cristalina
Projeto piloto de telemedicina no SUS, em Cristalina


Com a nova lei, a telemedicina foi amplamente utilizada e se consolidou como instrumento de ampliação do acesso à saúde. Desde então, o destaque da telemedicina chamou a atenção da sociedade, que utilizou essa modalidade de atendimento em larga escala e com excelente aceitação.

No dia 25/06/2020, a Comissão Externa da Câmara dos Deputados destinada a acompanhar o Enfrentamento à Pandemia da Covid-19 no Brasil (CEXCORVI) realizou uma audiência pública com o tema “Telemedicina e Teleconsulta”, tendo a presença de inúmeros representantes de entidades médicas e de autoridades no assunto, além de minha participação, claro.

Diante de milhares de atendimentos realizados por meio de teleconsultas via hot lines, chatbots, aplicativos, teleorientações diretas ao paciente ou com especialistas, teletriagem, busca ativa de pacientes, telemonitoramento de pacientes com COVID-19, suporte remoto a equipes que cuidam de pacientes graves, entre outros… Ficou claro que o passo dado no rumo da telessaúde é sem volta.

Seguiram-se normatizações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do Ministério da Saúde a respeito do tema, culminando com a Portaria n° 526/2020, que inseriu, de modo definitivo, a teleconsulta, o telemonitoramento e o telediagnóstico na Tabela de Procedimentos do SUS em relação a vários profissionais de saúde.

Além disso, vimos o Ofício 1.756/2020 do Conselho Federal de Medicina, tratando de teleorientação, telemonitoramento, teleinterconsulta, durante a pandemia. E ainda a portaria 467/2020 do Ministério da Saúde, válida durante a pandemia, tratando de teleconsulta, telemonitoramento, telediagnóstico, receita eletrônica. Acrescente-se a Nota Técnica n° 3/2020 da Agência Nacional de Saúde Suplementar, válida durante a pandemia, criando o código “Telessaúde” como tipo de atendimento, com remuneração acordada livremente entre as partes. Sem esquecer da Medida Provisória 983/2020, com validade permanente, facilitando receita e atestado médicos eletrônicos.

Telemedicina Einstein
Robô criado para o atendimento à distância

Hoje, a telemedicina, que já era amplamente utilizada em inúmeros países, como Portugal, Israel, Estados Unidos, se tornou uma realidade não somente inescapável aqui no Brasil, mas também um caso de sucesso, além de se sobressair como instrumento fundamental da verdadeira democratização do acesso à saúde de qualidade e do aumento da capilaridade da atenção primária, abrangendo territórios hoje excluídos ou muito mal assistidos.

Mas a telemedicina não pode ficar restrita ao tempo da pandemia da Covid-19! Não podemos retroceder. Precisamos construir o caminho para o cenário pós-pandemia. Por certo, isso deve ser feito utilizando-se como referência a experiência e as soluções geradas na pandemia, mas construindo um arcabouço legislativo permanente e, mais importante, adequado. Para tal, é preciso a superação de qualquer resistência, por meio do diálogo e de uma construção coletiva.

Nesse sentido, considero a criação da Frente Parlamentar Mista de Telessaúde, em novembro de 2020, um importante marco da luta pela democratização do acesso à saúde. A missão da Frente é garantir a busca de políticas públicas baseadas na melhor evidência disponível, na utilização racional de recursos e fazendo uso das benesses da revolução digital e tecnológica, para transformar o direito à saúde em uma realidade concreta para a população brasileira e não somente em mero direito abstrato. Para chegarmos lá e estabelecermos a telessaúde como modalidade permanente no Brasil, por meio de Lei específica, estamos discutindo bastante os temas relacionados com as tecnologias e inovação na área da saúde; buscando respaldo e dados técnicos para auxiliar no esclarecimento e na educação da população sobre os benefícios da telessaúde; e, principalmente, mantendo o diálogo constante com as principais entidades profissionais da área de saúde.

O diálogo aberto e respeitoso com os principais protagonistas da saúde é estruturante neste processo. A Frente tem feito reuniões com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e outros conselhos profissionais, Associação Médica Brasileira, Agência Nacional de Saúde Suplementar, operadoras de planos de saúde, Ministério da Saúde . Também iniciou uma série de audiências públicas para discutir temas importantes como disponibilidade de estrutura mínima, primeira consulta, remuneração, territorialidade, sigilo e segurança digital, fraudes, treinamento e formação de capital humano, entre outros.

Com todas essas discussões, estaremos preparados para discutir e aprovar o projeto de lei n° 1998/2020, de minha autoria, que estabelece a normatização da telemedicina para além do período de pandemia e o projeto de lei n° 2394/2020, que torna definitivos os benefícios advindos da exitosa experiência da telessaúde no combate à pandemia, autorizando os profissionais da saúde a exercerem suas atividades de modo remoto.

É premente voltar nossos olhos para o futuro, resgatar o propósito do SUS, colocar o cidadão no centro da nossa atenção. A tecnologia traz aquilo que vemos como futuro instantaneamente para o presente – e o presente rapidamente vira passado! O Brasil merece desfrutar desta realidade: vejo a telessaúde, ou a saúde digital, não como uma solução mágica e única, mas como uma forma de atender à saúde, agilizando, eliminando as grandes distâncias impostas pela nossa continentalidade e possibilitando maior qualidade no atendimento e democratização do acesso.

As evidências mostram que, com uso combinado de tecnologias, há melhoria na qualidade de atendimento e na saúde dos cidadãos. Além de haver mitigação dos desperdícios, fator que assola a saúde, não só no Brasil, como no mundo. Sem esquecer da possibilidade de fazer o acompanhamento de indicadores de saúde, de otimizar a administração, levando economia e eficiência para o sistema e melhoria dos serviços de saúde. Outro ponto, que como professora de gestão preciso ressaltar, é que com o compartilhamento de dados, protocolos, enfim de conhecimento, há também melhoria na formação e aprimoramento contínuo dos profissionais de saúde e de todos os envolvidos no processo!

Os anos da pandemia vêm sendo anos de grandes desafios para o povo brasileiro e para o Parlamento, mas também de grandes avanços. Mas considero que tivemos um papel importante em um dos principais incrementos à saúde pública neste momento de crise sanitária, ao trabalhar com afinco na defesa da disponibilização dos melhores recursos ao atendimento da população, dentre eles destacando-se a telessaúde ao alcance de todos. Uma pandemia quebrando paradigmas para que não fiquemos na pré-história da atenção à saúde. Depois de aprovadas as leis, o desafio será construirmos uma rede de atendimento integrada, com capilaridade.

E sempre resgatando o ponto principal: levar a saúde integrada com qualidade a qualquer cidadão brasileiro, melhorando a vida da população brasileira, e, em especial, os mais carentes.

Vem falar comigo!